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quinta-feira, 24 de julho de 2014

Lêdo Ivo & Gonçalo Ivo




                             TASMÂNIA


     É quase sempre verão na cidade do Rio. É a estação onde tudo se move lentamente na travessia espessa dos dias. E em uma dessas manhãs de fevereiro ou março, quando o sol tropical irradia uma luz amarela intensa e constantemente percebemos o rumor de pássaros e cigarras, pude então voltar à minha infância e nela reencontrar as primeiras lembranças de meu pai.

     Era como um ritual - todos os sábados saíamos para passeios. Possivelmente era o ano de 1965. Eu tinha uns seis anos de idade - a cidade do Rio de Janeiro sofria grandes transformações urbanísticas. Vivíamos no Brasil o primeiro ano de uma ditadura militar. Havia o recém inaugurado parque do Flamengo, projeto modernista tardio onde na beira do mar costumava correr com a minha bicicleta. Esta área, bem em frente ao Pão de Açúcar e às águas tranquilas da Baía de Guanabara, havia sido usurpada do mar que em outros tempos batia bem mais próximo da cidade. Como todos os sábados Leda, minha mãe, trabalhava o dia todo na universidade como professora, cabia então a meu pai o encargo deste momento eterno de evasão.

      Às vezes saíamos bem cedo em direção ao centro da cidade do Rio. Na velha Lapa, bairro boêmio, onde viveu o  poeta Manuel Bandeira que conheci quando eu era menino, ficavam as várias redações dos principais jornais da época. Lêdo colaborava em muitos deles. Não eram raras as ocasiões em que visitava não só as redações - como o Correio da Manhã na rua Gomes Freire e a Tribuna da Imprensa na rua do Lavradio, mas também as oficinas de impressão  com seus enormes galpões com claraboias contra um céu muito azul e suas rotativas e odor de tinta e chumbo dos linotipos.

     Porém um pouco longe do mar, o passeio que mais me agradava fazer com meu pai era a caminhada a pé até a cratera recém aberta do túnel Rebouças no bairro do Cosme Velho. Na volta para casa sempre parávamos em algum terreno baldio ou construção demolida. Contemplávamos o cenário da renovação urbana. O passado não muito distante com seus casarios de fins do séc. XIX ia sendo rapidamente apagado por ruidosos tratores. Os escombros destas casas senhoriais com jardins, árvores frutíferas, fontes, estátuas, pedras de cantaria a emoldurar janelas, servidas em outras épocas para mirar e perceber a passagem lenta do tempo eram o sítio onde debaixo de uma frondosa árvore, mangueira ou jaqueira eu viajava com meu caminhão de madeira por estradas imaginárias, ruas, abismos, e mesmo absorto no meu pequeno mundo, reduzido a pedra, erva, madeira e areia, certa vez não me escapou o exato momento em que percebi meu pai, com a cabeça levantada e o olhar fixo num ponto qualquer do firmamento, falando sozinho...

     Perguntei-lhe do que falava. Me respondeu de forma lacônica - estou a recitar Camões...

      Só décadas mais tarde pude perceber a amplitude e o significado desta pequena revelação.

      Lêdo Ivo se dizia um animal literário. E a este reino se incorporou de forma precoce. Para entendermos o quão profunda foi esta vocação ou dom sou obrigado a recorrer a uma passagem do seu livro "Confissões de um Poeta", publicado em 1979. Nela Lêdo se refere à descoberta das palavras. As encontrou primeiro em casa paterna, nos retalhos de um velho atlas, em dicionários, como também na  coleção que Floriano, meu avô, tinha da National Geographic Magazine ou as ouvia em qualquer lugar...

      Diz o poeta Lêdo Ivo:

      "- Tasmânia.

 Achava-lhe um sabor oceânico de distância, era como se ela fosse a casca acinzentada e veludosa de certa fruta - um sapoti, por exemplo. Não sabia o que havia dentro dessa palavra, ignorava o gosto, a consistência e a cor da polpa, ou a confirmação do caroço oculto. Cansava-me dela, desistia de penetrar no cerne de seu mistério, agarrava-me a outras.... Guatemala! Flórida! Insulíndia! Eram palavras azuis como o anil das lavadeiras. Eram navios brancos, iguais às nuvens que boiavam acima dos negros anuns em revoada. ..."

      Talvez a palavra para o poeta seja como a cor para o pintor. A cor nem sempre é ela mesma. Existe dentro de um colorido , conversam umas com as outras, possuem intensidades, brilhos, tonalidades... É como  a palavra dentro do poema. O lápis lázuli ou o ouro ou  a terra de úmbria quando dispersados, espalhados sobre o plano dos retábulos antigos deixa de ser mineral ou metal. Geram espaços santificados pelas mãos de Giotto, Duccio, Fra Angélico, os irmãos Cioni, e muitos outros. Desde a infância o poeta Lêdo Ivo se agarrou às belas palavras como as crianças às caixas de lápis de cor. Pois o sortilégio das palavras na página branca é como a cor que vai manchando o papel.

     Confissões de um Poeta é, segundo muitos críticos, escritores, estudiosos e até mesmo psicanalistas como Hélio Pelegrino, um livro único na literatura. Poliforme, caleidoscópico, assimétrico. Segundo o poeta brasileiro Ivan Junqueira, "se trata de uma mistura heterodoxa e arbitrária de memorialismo, poesia, prosa e pensamento aforísmico."

     Mas a arbitrariedade não é o cerne e a seiva de que se compõe e se nutre a poesia? Não é ela que nos guia nesta vida mesmo quando sonhamos? Lêdo Ivo nos diz ainda no mesmo livro " e a noite nasce poliédrica ". Lêdo Ivo se espantava com a grande perplexidade de estar no mundo com tantas perguntas sem resposta que iam se acumulando: "nem sequer sei se existo, no sentido de ter uma existência nítida, com fronteiras definidas, talvez meu mundo seja o mundo da ambiguidade...".

     Ou, para ser mais preciso no que digo, o poema O Dia Inacabado, do livro Mormaço publicado em 2011:


               Como todos os homens, sou inacabado.

               Jamais termino de ser.

               Após a noite breve um longo amanhecer

               me detém no umbral do dia.

               Perco o que ganho no sonho e no desejo

               quando a mim mesmo me acrescento.

               Toda vez que somo, subtraio-me,

               uma porção levada pelo vento.

               Incompleto no dia inacabado,

               livre de ser ainda como e quando,

               sigo a marcha das plantas e das estrelas.

               E o que me falta e sobra é o meu contentamento.


      À morte de Leda, minha mãe, em 2004, após 59 anos de casamento, o poeta responde com um Réquiem, longo poema sobre as coisas daqui e caminhadas entre estreitas estradas e tortuosas sendas na densa e desconhecida floresta. Triste, metafísico, profundo, poliédrico como se estivéssemos a ouvir Tomas Luis Vitoria.

      Mas aos poucos, com o passar do tempo, neste "longo caminho entre dois nadas", o poeta se revigora e passa a escrever mais e mais. Talvez sua produção dos últimos dez anos seja das mais abundantes, vivas e precisas. Está na cimeira de sua arte. É o senhor que volta a encantar todas as belíssimas palavras da sua infância - Tasmânia, Insulíndia, Guatemala...

      Mas a beleza também está incrustada nos horrores, banalidades, alegrias e futilidades dos nossos longos dias mais prosaicos.

      Lêdo Ivo, o poeta dos pobres na estação rodoviária também canta de forma irônica os afortunados usuários das latrinas do hotel Ritz de Madri.

            SONETO DAS ESTRELAS

            Sentado na latrina do Hotel Ritz

            penso nos pobres e nos desvalidos.

            Como é cruel o mundo, dividido

            entre os que nada têm e os que têm tudo.


            Fulgor de cinco estrelas - e a mortiça

            vida de merda sem estrela alguma.

            Dói em mim o mistério da injustiça,

            Uma ferida que não cicatriza.


            Imagino uma aurora repentina,

            a ruidosa descarga de água pura

            que restaura a brancura das latrinas.


            Que rebente no mundo uma alvorada

            - formigueiro de luz, nuvem vermelha -

            e corrija a injustiça das estrelas.



        Não podemos falar de glória literária, pois esta não existe para quem não mais está. A glória sim, é ter vivido a longa vida e visto o mundo como nunca ninguém o viu. É cantar com a voz pessoal e se espantar com o cão que bebe a água da chuva, com o voo das tanajuras em pleno verão ou com o jumento na ribanceira, "que contempla o dia trêmulo de tanta claridade e emite um relincho, seu tributo à beleza do universo." Lêdo Ivo não parava de repetir que o poeta canta pelos que não tem voz.

      A poesia sempre está no limiar da aurora. Desnecessária no nosso mundo pragmático, porém ainda presente nos nossos sonhos, esta forma antiga de linguagem se agrega ao nosso inconsciente coletivo. Vive de seu eterno presente. Está sempre lá, em alguém, em algum lugar. É uma das formas do homem dizer, falar, ser algo, uma geografia, uma coisa, uma presença ou ausência, uma mirada, um sentimento, um cheiro, uma paisagem, qualquer coisa que seja pressentimento e rastro de vida.

       Depois da morte de minha mãe Lêdo me elegeu amigo próximo e confidente. Em Paris, onde moro, passávamos as madrugadas conversando sobre literatura, pintura, música... Eu que sempre fui uma criatura do dia e da luz do sol me rendia a este encanto de inteligência, memória, ironia, complexidade - simplicidade e humanidade pura. Atravessávamos as noites de inverno na cozinha de casa entre a verdade e a ficção absoluta, e várias garrafas de vinho...

       Estas foram noites e madrugadas inesquecíveis para mim.

 Lêdo  quis estar comigo, Denise, Antonia e Leonardo para o Natal de 2012 em Sevilha. Atravessamos juntos pela última vez o oceano Atlântico na noite de sábado, 14 de dezembro. Meu pai queria encontrar alguns amigos de Madri como os poetas Juan Carlos Mestre e Martín López-Vega.

       Na véspera de partirmos a Sevilha, nos encontramos com Martín López-Vega. Caminhamos à noite pela calle Serrano, entramos em um café. Lêdo nos contou do novo livro de poesia que estava escrevendo e que tinha como título provisório de "O Navio Ancorado na Laguna". Falou de outros possíveis títulos como "Novos Poemas" ou "A Hora do Relâmpago". Foi então que por sugestão minha acatou o simples título "Relâmpago", mais direto como Plenilúnio, Mormaço e Aurora.

       Porém guardava um segredo maior. Tinha vontade de voltar a cruzar o rio Guadalquivir. Se atormentava pois mesmo tendo uma memória prodigiosa confessava o esquecimento deste feito em uma viagem à Espanha com minha mãe em 1952. Contou-nos também que numa das várias praças sevilhanas uma cigana leu a mão de Leda e disse que ela ainda teria um filho varão e que um dia ele usaria um uniforme. Visitamos  a imponente catedral mas foi no Alcazar, entre arcadas e jardins luxuriantes mesmo no inverno com suas laranjeiras carregadas de frutos dourados que segurou meu braço e apontando para a sebe falou: olhe o paraíso.

       No dia seguinte cumpriu sua promessa de bom peregrino. Atravessou a pé a ponte sobre o Guadalquivir. Estava feliz. Queria comer peixe, frutos do mar e tomar o vinho albarinho bem fresco. Escolheu a popular Marisquerias Emilio no bairro de Triana. Talvez o cheiro de tanto mar lhe recordasse a Maceió da vida toda.

       Cremamos o corpo de meu pai às sete horas da manhã do dia 25 de dezembro no cemitério San Fernando em Sevilha. Enquanto aguardávamos a cerimônia resolvemos passear pelas frias aleias desertas desta necrópole. Foi então que um pequeno gato astuto que caçava pássaros inadvertidos veio a nós se juntar. Disse então ao meu filho "acho que seu avô reencarnou...".



Gonçalo Ivo

Paris, 5 de abril de 2014.


           



5 comentários:

  1. Lindo texto de meu irmão Gonçalo. Bela e merecida homenagem a nosso pai!
    Obrigada por partilhar, querido amigo Marco

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  2. Marco, estou compartilhando este texto com a Academia Virtual de Escritores Clandestinos (um grupo do facebook). Um abraço

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  3. Publicado pela primeira vez em 11 de abril de 2014 !!!
    Como se trata de um texto Belíssimo, sempre vale reler !!!
    Um abraço afetuoso ao meu irmão Gonçalo !!!

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